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A pesquisadora e professora entrerriense Maria do Socorro Aquino, mestra em Estudo de Linguagens pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia) ganhou destaque e respeito, principalmente entre a comunidade negra baiana, ao analisar o caso de uma denúncia de violência, cometida por um dos diretores do Ilê Aiyê, contra uma das integrantes do bloco. 

- A mais bela dos belos -

Li indignada, mas não tão surpresa, o relato de Dayse Sacramento sobre o que aconteceu com ela dentro das cordas do Ilê Aiyê, na terça-feira de carnaval. Seu depoimento é estarrecedor, pois retrata a violência sofrida por nós, mulheres, em vários segmentos da sociedade, no cotidiano mesmo de nossas ações. Dayse não imaginou ao vestir a fantasia do Ilê Aiyê, como nos conta de forma tão comovente, que portando aquela fantasia, quase um escudo imaginário na cabeça de muitas de nós, seria tratada com desrespeito e violência por um diretor do próprio bloco.

Alguém que é supostamente esclarecido, médico, pertencente a uma elite negra em Salvador, militante da causa negra.

Meu amigo e de Dayse, Adelson Santana, professor, me fez as seguintes perguntas: que tratamento esse médico dedica no dia a dia dos seus irmãos e irmãs negros? Será que os trata com respeito e consideração ou com o mesmo preconceito que alguns médicos brancos, que vê no usuário do SUS um cidadão de segunda classe? Isso me lembra de que muitos casos de violência contra a mulher são cometidos por cidadãos acima de qualquer suspeita.

Mais do que discutir o que o ato foi feito por um membro do movimento negro, devemos observar que há um problema acontecendo que diz respeito a todos e todas, não importando etnia, credo ou escolaridade. É a violência contra a mulher. É preocupante como muitos homens pensar que podem tratar a mulher aos gritos e aos tapas quando estas discordam do que dizem ou quando vão tratar qualquer questão. Dayse trouxe à tona a problemática, mas muitas mulheres que agora me leem já passaram por algo assim e muitos homens também agiram assim.

Em 2011, eu e professora Jurema Barreto fizemos um trabalho de divulgação e estudo sobre a Lei Maria da Penha. Ficamos surpresas com os relatos de violência doméstica, muitos acontecendo sob nossos narizes, mulheres diuturnamente violentadas, humilhadas, agredidas física e verbalmente. Todas mudas, até então.

Nesse momento, minhas reflexões não passam pelo crivo da pesquisadora e professora. Penso a partir de minha condição feminina, do meu olhar de mulher. Reflito como esse círculo de violência é difícil de ser quebrado. Observando os comportamentos de chefes, motoristas, pais, maridos e namorados chego à conclusão que eles pensam que é só dar uns gritos que nós mulheres calaremos e nos amedrontaremos perante suas vontades. E muitas vezes é isso que acontece.

Ouvi muitas pessoas dizerem que não vai dar em nada e que Dayse corre o risco de ser transformada em culpada. É assim que agem os algozes, procuram justificar sua violência culpando a vítima: bati porque me traiu, porque não me respeitou – estava de saia curta! (ou de batom vermelho, ou não fez a comida, ou... ou). No trânsito, na rua, em casa e no trabalho a violência é constante. Não, senhores. Não há justificativas para esbofetear, empurrar, socar, gritar, chutar ou qualquer outra forma que a violência assuma.

Analiso o retorno à África pelo bloco Ilê Aiyê como resposta à imposição dos valores ocidentais pelos processos de escravidão e da continuação de alijamento perpetrado, ainda hoje, aos negros brasileiros. A escolha do feminino como símbolo principal representa o retorno às raízes, a volta para um lugar simbólico que reapresenta sua humanidade perdida.

No conjunto de apropriações simbólicas feitas pelo Bloco Ilê Aiyê, a afirmação de um jeito de usar o cabelo, com torços e tranças, é uma de suas principais estratégias. A resistência de mulheres que fazem parte do bloco Ilê Aiyê, representa a elaboração de estratégias que atuam numa operação de combate ao racismo, destacando as tranças como elemento de afirmação de uma identidade negra que não aceita mais a visibilidade imposta às mulheres negras e que a tornam invisível em suas especificidades, pois utiliza pressupostos que sustentam a ideia de inferioridade.

A trajetória do Ilê Aiyê analisada desta forma faz sentido quando pensamos no quanto representou para os negros e negras repensarem a própria imagem. Tudo isso no plano simbólico. A experiência como deusa no pedestal, dançarina para sempre alegre, não me representa mais. Sei que sou deusa e bela, mas preciso ser reconhecida hoje, no meu tempo, como mais que isso. Bela e mãe, sim, mas dona de mim mesma. Uma Deusa que não precisa se subjugar para ser respeitada. A inferioridade repudiada está aí, precisamos reconhecê-la para combatê-la.

O que viu o senhor que agrediu Dayse Sacramento ao olhá-la na noite de terça-feira de carnaval? O que veem os homens ao agredir as mães dos seus filhos, esposas e companheiras? Uma deusa do ébano? Uma candace? Uma mãe preta? Acredito que não. Veem alguém que podem fazer qualquer coisa de ignóbil e que se safará de alguma forma. Se Dayse tivesse decidido dar o flagrante seria um marco não contra o movimento negro, mas a favor do fim da violência contra a mulher. Discutir tais assuntos representa um avanço e não um retrocesso no movimento negro. O que pode enfraquecer a força conquistada pelo Ilê Aiyê é saber que tais episódios acontecem sob seus torços e tranças e aceita-los como natural.


Por Maria do Socorro Aquino

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